No Face
quarta-feira, 7 de março de 2012
As Origens da Poesia do RAP
Muitos pensadores e historiadores eurocêntricos (Hegel, Coupland, Gaxotte, Charles-André Julien, etc…) negaram que a África fosse uma parte histórica do mundo, sustentando teorias racistas e, escamoteando os grandes desenvolvimentos produzidos neste continente-berço da humanidade. A historiografia tradicional, limitada pelos documentos escritos (fontes da “verdade histórica”), afirmou que a maioria das sociedades africanas não possuía história porque não tinham escrita. Se a África não teve um Homero para escrever epopéias, como disse Gaxotte, por outro lado possuiu um Bala Faseké, o grandioso griot malinquês de Sundjata, que como tantos outros griots passou a vida transmitindo a “herança do ouvido” (KI-ZERBO, 1999, p. 11).
Em muitas destas sociedades a palavra além de mágica (essencial para religiões como as de origem jeje), era um instrumento de conservação da história e das tradições dos seus povos. Os griots além de historiadores e menestréis, eram muitas vezes homens-fronteira, alguns deles eram responsáveis pela memorização de linhagens reais, outros iam de povoado em povoado, de tribo em tribo, contado e cantando histórias tradicionais daquele povo, geralmente acompanhados de instrumentos musicais. Quando um griot chegava era o momento de repassar para todos a “herança do ouvido”, metaforicamente o griot era uma verdadeira “biblioteca ambulante”. Quando criticam a viabilidade da história das sociedades ágrafas africanas, os ideólogos etnocentristas esquecem que a oralidade tem a equivalente eficácia e é tão subjetiva quanto uma fonte escrita pode o ser, apesar do mito positivista criado por Ranke, que dita que as fontes e os fatos falam por si mesmos, vigorar na historiografia tradicional etnocêntrica. Apesar da subjetividade, o profissional historiador competente, através da comparação de relatos orais com fontes escritas ou arqueológicas, muitas vezes descobre a similaridade entre o oral e as outras fontes. Entrevistamos Len, rapper africano de Guiné-Bissau que mora em Porto Alegre de 1998 e também é MC do grupo Dependentes, ele também ressaltou a questão da oralidade africana:
Esta questão da oralidade é na África toda, meu[...]a educação africana é extremamente oral. Tudo o que os meus avós sabem, aprenderam por meio da oralidade. Então tudo isso é passado pros netos, pros descendentes oralmente, e nós, eu , a minha geração[...]tiveram oportunidade de sair fora, que nem eu, e estudá [...] Na minha situação eu não recebi a educação oralmente, mas mesmo assim eu tinha a minha vó, antes de falecer,ela me contava umas coisas, assim, tu viu que tinha a raiz de educar as pessoas oralmente. Isto é fundamental, estudamos isso no colégio, a questão da oralidade que pe bem africana mesmo.”
Len do grupo Dependentes
A complexidade e heterogeneidade musical africana fica evidente quando o mesmo Len nos afirma que Guiné-Bissau, um país que não possui mais de 2 milhões de habitantes:
[...]é constituída por trinta e poças etnias e cada etnia tem uma cultura diferente, um dialeto diferente e um estilo de música diferente e dentro de todo o País, todo mundo fala o criolo, que é o dialeto que todo mundo têm que falar, pra se comunicá entre as etnias. E temos o ritmo mais popular que é conhecido como Cumbe.
Len do grupo Dependentes
Ao serem escravizados e mandados nos inumanos tumbeiros para as Américas trabalharem nas plantagens coloniais (GORENDER, 1988, p. 77-95), os africanos trouxeram apenas sua força de trabalho e sua “bagagem” cultural na memória. Na América inglesa os protestantes reprimiram duramente os instrumentos africanos, já na América católica francesa, portuguesa e espanhola, apesar da repressão, os cultos religiosos puderam sobreviver através do sincretismo guardando a riqueza do instrumental africano. Apesar de não poderem tocar seus instrumentos os africanos e afro-descendentes dos EUA continuavam sua tradição musical e oral com as Work-Songs e os Field Hollers que eram cantos de trabalho que ajudavam a amenizar a dor e o sofrimento dos africanos escravizados. Os senhores brancos não se importavam com a cantoria, pois eles achavam que proibir os escravos de cantar poderia prejudicar o trabalho. Em sua tese “Uma Forma de Manifestação e Resistência da Cultura Negra” de pós-graduação do Departamento de Antropologia da PUC-SP, Tella (apud PIMENTEL, p.20) afirma que :
Os negros levados ao sul dos EUA vinham da África Ocidental (do litoral do Senegal, ao norte, até o Golfo da Guiné, no sul), especialmente da região de Daomé, seqüestrados pelos franceses. Para esses africanos, a música não era só arte ou divertimento. Eles não possuíam escrita, então usavam canções e poemas para preservar a história de cada tribo, suas tradições e leis. Um africano cantava trabalhando, estudando, festejando, guerreando, em qualquer ocasião.
No fim do século XVIII, missionários protestantes introduziram a religião branca entre os escravos, que muitas vezes freqüentavam o culto na fazenda. Desse modo os negros puderam libertar sua musicalidade reprimida, louvando um Cristo libertador. Surge assim o Spiritual. Com o Blues, surge uma leitura nova e mais individual, misturando a influência das Work-Songs com os acordes dos hinos religiosos e refletindo sobre as angústias do negro. O termo blue se traduz por um sentimento entre a tristeza e a alegria, é difícil explicar em palavras escritas. Outros estilos musicais foram sendo criados pelos negros recém-libertos norte-americanos, os mais importantes foram o ragtime e o jazz. O primeiro é uma leitura africana do piano europeu e quanto ao segundo, nascido em Nova Orleans, voltamos a afirmar a diferenciação entre a colonização protestante e católica para entende-lo. Na região de Louisiana, inicialmente francesa, a religião africana, principalmente a de origem jeje, pôde sobreviver com toda a sua musicalidade, por causa da repressão mais branda dos católicos. Lá, como aqui no Brasil, os colonizadores não se importavam em transformar a sua senzala num “harém particular”, ao contrário da forte segregação protestante. Usando o exemplo da colonização da África do Sul, Magnoli (1998, p.16) discorda desta tese que afirma que o processo de miscigenação deu-se somente nas áreas católicas:
Nas primeiras décadas, a colônia [África do Sul] conheceu um intenso processo de miscigenação entre os imigrantes europeus e os escravos africanos e malasianos. Desse processo surgiram os coloured, mestiços da região do Cabo. A intensidade da miscigenação entre os imigrantes protestantes e os nativos africanos nos primeiros tempos, desmente as teses que enxergam na mestiçagem um fenômeno próprio à colonização latina ou católica. Ao mesmo tempo reforça os estudos que situam a mestiçagem como um fenômeno ligado a uma fase específica e inicial das experiências coloniais, anterior a imigração familiar em massa quando o contingente masculino superava largamente o feminino na população imigrada.
Com o nascimento de mestiços, os créoles, estes acabavam por ter um tratamento melhor, sendo alguns até assumidos por seus pais. Elevados a um grau maior na hierarquia social, estes créoles, puderam estudar os instrumentos europeus, muitas vezes indo à Europa para realizar os estudos. Mas com a mudança das leis e o início da segregação radical, no final do século XIX, os créoles acabaram por voltar a sua condição de negro, não existia mais diferença entre pardo, mulato, marronzinho e negro, somente o cidadão WASP (White Anglo-Saxon Protestant) era considerado branco. Desta aproximação, com os créoles ensinando os negros os instrumentos europeus e a teoria da música européia e estes últimos ensinando para os primeiros os spirituals, blues e canções de trabalho, surge o Jazz, uma música altamente desenvolvida e plena da musicalidade africana, que muitas vezes faz os instrumentos “falar”. Ora, fazer os instrumentos “falar”, não seria uma herança da oralidade?O Jazz passou por várias fases e obteve vários rótulos como dixieland, swing, bebop, cool, chegando a dominar por muito tempo a indústria fonográfica estadunidense. A história do Jazz, desde sua criação revolucionária, até a comercialização, com revoltas e inovações como o bebop de Charlie Parker e Dizzy Gillispie é riquíssima, e dela podemos tirar vários ensinamentos para entender como a Cultura Popular, apesar de assimilada em grande parte, sobrevive no capitalismo. Após o jazz a musicalidade negra continuou dando seus frutos, o rock-and-roll, o soul e o já citado funk.
A tradição oral africana nos Estados Unidos expressava-se também em espécies de desafios de rimadores, chamados de Dozens, tendo similaridades com o preaching, o signifying, boasting e no toasting, este último de origem jamaicana. Estas poesias improvisadas eram feitas com gírias dos bairros negros, e contavam histórias de malandros, cafetões, jogadores, prostitutas e todo tipo marginalizado pela sociedade. No começo da década de 1970, alguns negros e porto-riquenhos começaram a mandar mensagens poéticas de conscientização política em cima de bases instrumentais. Gil Scott-Heron, lançava versos rebeldes sobre bases influenciadas pelo jazz e soul e os Last Poets faziam a mesma coisa, porém voltando a raiz dos instrumentos de percussão africanos. Juarez Piñero fazia uma poesia extremamente marginal, refletindo sobre a vida dos viciados e o submundo, e declamava seus poemas falados, mas musicais, em bares. A importância destes nomes para o RAP é enorme, pois eles foram uma espécie de conexão entre as tradições orais africanas e a geração que criou o Mcing (antigo nome do RAP).
No Brasil, as tradições orais africanas acabaram por ser denominadas pela região em que foram criadas. Um exemplo, o côco de embolada, típica música pernambucana, tem uma grande semelhança com o RAP de improviso, o chamado freestyle. As próprias técnicas de memorização e rima possuem semelhanças entre o RAP e muitas músicas de repentistas, poetas populares, trovadores de toda espécie. O ritmo produzido pelo pandeiro no côco permite a criação e improvisação, assim como a base criada pelo DJ de RAP. Alguns grupos de RAP brasileiros como Faces do Subúrbio de Recife e Thaide e DJ Hum de São Paulo aproximaram o RAP da embolada, demonstrando a similaridade e a origem africana comum entre os dois estilos.
Ver creditos ao site http://blacksound.com.br/?cat=17.
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